terça-feira, 5 de janeiro de 2016



Estômago Vazio
 “ Não quero a faca nem queijo. Quero a fome.”Adélia Prado
Aproximo desconfiança de quem só come pelas beiradas. Gente que alinha passos nos filetes e nem estende a margem. Viver é preciosidade, feito pedra preciosa tirada do limo, sendo necessário esfregar bem as mãos, limpar, polir e encerar. Penso, logo, em minha vivente-poeta Adélia Prado que sintetiza a vida  como sinal de boniteza; uma delicada engrenagem.
Sim, o movimento é que garante a vida. A dança que provoca o cosmos, faz a gente acreditar na fé e trazer muitas flores para a esperança, minha companheira de longa data. É dela que retiro o pó dos dias, refaço os rascunhos esquecidos na gaveta e arrumo, com precisão e detalhes, minha bagunça amanhecida.
Trago Adélia entre meus versos e dou para mastigar suas palavras. Gosto quando poetiza que dor não é amargura. E que sua alma nasceu desposada. Dor e alma tendem caminhar em estradas próximas, trazendo espinhos para a carne, o que traz invenções para meu jeito de apanhar alegrias e enterrar, no fundo de casa, aquelas tristezas danadas. 
Sou dada a poesias, costumo engoli-las em doses homeopáticas, mas gosto mesmo de apreciá-las como prato feito, engolindo, vorazmente, porque costumo ter muitas fomes, em todas as horas do dia. Como amor com preciosidade, sentindo cada pedaço para que traga para o coração as vitaminas necessárias.
E saudade! Ah, saudade mastigo, delicadamente, com medo de escapar... aí, não a terei mais e ficará o gosto inexato da ausência. E ausência está sempre no prato como tempero, pimenta forte e verdura mal cozida. Além disso, o medo deixa a comida salgada demais ou traz aquele dizer insosso. Tira o desejo!
Sei que viver faz a gente rasgar as costas em paredes rugosas, com pontas salientes, que chega sangrar e, escorrendo água, a dor triplica. Por isso, tem tanta gente querendo comida light, sem peso, parede lisa, bem amassada, podendo passar  sem qualquer sentença de risco. Gente que nem deseja sobremesa e bebida. Gente que prefere criar o óbvio e nem se culpa por não conhecer a poética adeliana.
Mas, prefiro correr o risco dos dias coloridos e das fotos em PB. Prefiro o visgo das horas, mesmo que tenha espectros sondando as tarefas. Não negligencio a caos nem o paladar amargo. Também sou capaz de equacionar a felicidade e inventar trejeitos de alegria. Trago seivas de esperança nos olhos mesmo estando soturnos. Mulher nasce desdobrável, responde Adélia para mim.


* Texto publicado na Cachoeiro Cult, novembro de 2015. 





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