domingo, 25 de setembro de 2016

As voltas que a vida dá!



Não gostava que diziam coisas a seu respeito. Sempre preveniu suas palavras e decretava sua capacidade acima da média. Gostava de pontuar até o último instante e tudo que dissessem ao contrário incomodava até seus fios de cabelo. Nada que revelassem alteraria sua percepção quase egoísta e arrogante sobre si e o mundo que brotava ao redor.
Era tudo caso pensado. Suas sentenças eram arrancadas de seu mundo particular e se considerava a maior de todas as mulheres. Errava, desconstruía, perdia e perpetuava, mas não aceitava o fato de ter frestas, haver lacunas em suas ideias tão sugestivas. Soberbamente, era dona de si e de outros.
Era de peso forte e alma inaugurada. Era de desejos e os alimentava. Mantinha-se em sua condição de indivíduo à frente de qualquer tempo. Não acetinava expressões de felicidade nem tão pouco de imponência. No amor, gostava de viver até o último sentimento, até a última esperança. Mas, era de abandonar caso não houvesse comprometimento.
Sua maneira de encarar o mundo e seus dilemas a fazia resistente feito concreto seco, feito tecido que não esgarça. Ela tinha sangue nas veias e aonde mais coubesse. Não esmorecia expressões nem suas emoções mais nobres. Era acima de suas suspeitas e de sua alma petulante.
Ela carnalizava suas intenções mais nobres e sublimava suas ideologias. Era tantas que mal cabiam em si, em suas partes nem sempre visitadas. Nada mais intencional que ser ela mesma, em depositar seu olhar  nas referências mais simples ou nas gentes mais complexas.
Era sua própria tendência, ditando suas modas e verdades quantas vezes se fizessem precisas. Não era de catar migalhas, organizar o que sobrasse. Era de gloriar suas conquistas e aclamar os universos recém-criados por ela. Ela, realmente, se bastava.
Na verdade, sua ilusão era acreditar que nada feriria seu instinto de mulher, nada acorvadaria suas perspectivas e anseios. Querida, a vida está sempre nos surpreendendo e dá muitas voltas.




Temperos prosaicos


Gosto de engolir, vorazmente, as palavras. Gosto de tocá-las, cheirá-las, mastigar com precisão, identificar seus gostos e inundar meu corpo e minha vida com elas. Elas permitem a saciedade, o descanso de meu apetite, embora tenha uma fome que não dissipa, não cala.
A gente pode se esbaldar com palavras que trazem conforto e alegria, palavras que nos confortam e nos afagam o estômago e a alma. Palavras de amor, de perspectivas, de amizade, de respeito nos alimentam, dão para encher nossos órgãos da vida. Ampliam nosso cenário de introspectivas e experiências externas.
Particularmente, gosto de mastigar palavras de imprecisão, incomuns, aleatórias, abundantes, polissêmicas, de fundura, daquelas que muitos não se arriscam. Estes  preferem a permanência no raso, no domesticável, nas verdades que se alojam nas cascas.
Eu privilegio a comida aromatizada, de cuidados, de fino trato, bem disposta nas bocas de quem diz, nas mãos que deslizam para a escrita, para a tecitura dos fios poéticos, para a composição da melodia, para o afrontamento das prosas. Desejo alimentar-me, com gula, para que as palavras recriem meu espaço, equacionem o que parece insolúvel, pouco palpável.
Sei que, neste pecado, deixo de dizer e verbalizo demais o que nem sempre deseja acordar. Têm palavras que querem dormir, repousar em outras já inauguradas, ecoadas em dias de desassossego e penitência. Elas só querem descanso, mas sou excessiva.
Engulo, mastigo, aproprio-me, deixo abastar meu estômago e usufruir da minha corrente sanguínea. Permito que as palavras tomem conta de meu hemisfério, de meu corpo e sensações nem sempre purificadas. Elas exalam o melhor dos aromas, dos cheiros e gostos que se misturam e intercalam em minhas partes mais viscerais.
As palavras me consomem e me abarcam. Elas constituem o melhor dos meus apetites, o pior de minha fome, as verdades  envelhecidas e as que acabam de nascer, o gozo ao saciar o desejo mais carnal e os imperceptíveis. Deste pecado, sacralizo e infernizo os melhores e os piores dias.

A fome que insiste pernoitar em mim. As palavras que me espreitam, me viciam e me fazem uma faminta por excelência. Elas habitam meu cenário em branco, preenchem meus pratos e minha existência, subvertendo os sentidos do que me traz paz, amor, casulo, ordem e poesia. As palavras desejam sempre mais. E eu também.


Resultado de imagem para imagens de gula com palavras

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Sou das imprecisas penitências.
Das margens que habitam meu reverso,
os outros lados camuflados pelas rugas e nesgas do tempo e espaço.
Tenho desamparos em tantos rostos e versos.
Espreito as ausências que dilaceram minha vida interna.
A alma que teima doer e pernoitar no corpo.
-sem lágrimas ou ventos-
Danoso é viver na espera.
É serenar o amor que visita.
O amor que ampara as palavras.
Os espaços refrescam a casa e minha vontade danada de renascer.
Eu escapo e transbordo.
Sou resistente e insisto em nascer.
Viver dilacera e preenche.
Amarguras são afetos mal curados.
"Vinde que estou cansada"
Esperança anuncia tempos nascidos.
E meu descanso refrigera as imperfeições.



segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A vida-morte-poesia

A morte vem visitar o tempo.
E ele desbota com as emoções e os afetos.
E, dentre os fracassos, a gente desgasta.
A gente esgarça feito tecido que apodrece, se perde nos fios.
É tempo dado, doado, perdido.
A vida escorre entre danos e perdas.
E a arte alimenta o corpo, os desníveis e as frestas.
As palavras alinham o escorregadio e o pleno.
Ela embolsa o que não foi dito, o que se esvai entre os achados e sentidos.
O corte que demarca o homem e o seu legado.
As marcas do desconhecido e senhor.
As fendas deixadas nos cantos e espaços.
As esperanças descosturadas.
O amor espreitando nas portas.
A morte e seus embates dentre as cenas e marés.
Dos rios que encharcam a alma.
Das águas que assombreiam o coração.
Das vidas que purificam os homens.
Não há respostas nem tão poucos ventos.
Há caminhos de encontros e finitos.
Há passos e deslaços.
Permanência dos embargos e dores
em prantos de poesia.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016



Expurgo

Cabiam mais e mais de mim neste papel amassado, mas não havia pretensões de certezas na escrita que teimava cicatrizar. Era vontade de desaguar, arder, rasgar o que se fazia pesado aqui dentro. Não tinha mais palavras para serem arrancadas, dilaceradas e amputadas em partes do meu corpo.
Eu agonizava entre os rascunhos já amontoados há dias. Pulsava entre os arrematados sinais de pontuação, entre vírgulas que me deram náuseas. Jamais imaginaria que a pausa traria a presença do desconforto. Uma ponte foi desmanchada e não cresciam em mim as possibilidades de um verso extasiante. Nem um acento, um ponto de exclamação. Era vazio, papel em branco, folhas rasgadas, tela de computador aberta. 
Eu estava calcificada, vítima de completo limo, de letras que escorregavam e não previam uma frase, talvez um esguicho de sonoridades, fonemas que se converteriam em um discurso, mesmo que tosco ou maldito, mesmo que vago ou cheio de pontas.
Nada era o que tinha. Nada era a palavra que cantava para minhas mãos, agora, febril, trêmula, desfocada. Nada era o que me convertia e desafiava.
Nada era minha prestação de contas ao papel, era o que me causava repulsa e me violentava.
Tantas cabiam nos versos de amores mal ditos, muitas se intitulariam nos poemas de conveniência e de falta de justiça. Daria para que partes não fragmentadas pousassem nas lâminas daquelas palavras de avesso, de duas faces ou de significados abomináveis.
Várias se venderiam aos poemas mais sórdidos, às juras de amor não declaradas ou anestesiadas. Algumas não se importariam em servir de rima para os mistérios da alma, do mundo anunciado aos quatro cantos. Alimentariam sua poesia de dor mal curada ou emoção de parto não sentenciado.
Eram tantas que habitavam nos meus corpos amanhecidos e de lua. Eram as que pretendiam morar no poema que não tive, no poema que abortou outros que não vieram. Não tive suas companhias. Nem tive caso mal amado. Meu papel e todas as lacunas mantiveram o estágio letárgico, de plena depuração.








Des( poetizar)


Tem gente que acredita que poesia funde do pranto. Acredito que versos se encharcam de lágrimas.
Mas, poesia também nasce de flores, vida ribeirinha, planos desfeitos e emendados.
Acredito na poesia que traz para perto olhos palavras de terra batida, raízes secas, planta insistindo em nascer.
Sei que os poemas costumam dançar. Gostam de dizer modinhas, músicas dos excluídos, dos que estão no meio da roda, dos que emudeceram.
Poesia é de tanta gente, daquele que costura, gosta de contar feitos e lamúrias.
Daqueles que descansam a alma e dos que riem em alto e bom som. Daqueles que se atiram às paixões e dissolvem- se de todas elas.
Poesia grita, corta, inflama, afaga, perdoa e esquece. Poema salta dos músculos, das mãos endurecidas, pernas que perderam a força, pele ressequida, olhares nobres e tortos, alma que goza e ascende, coração destituído e mirabolante.
Poesia é de contentamento, força, dor, memórias, balbúrdia, vácuo.
É poesia eu dizer, você calar, voz das ruas, casas agonizantes.
Poesia é eu amar, descartar, clamar, deixar e trazer.
Poesia é visceral, astral, surreal, teatral.
Poesia são partes que colam na gente.
Poesia, assim dizer, são espaços habitados e vazios deixados nos corpos correspondidos e instituídos.
Poesia é o querer sem sentido e as insanidades racionais.
Poesia que espreita e conforta.
É desconstrução tão detalhada.
Poesia que digo nas ausências e cheia de si.
A poesia que, sorrateiramente, ecoa,  todos os dias,discursos de morte e reinvenção.