segunda-feira, 28 de março de 2016

Pratos na mesa

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Tinha o costume de seduzir as pessoas pela comida. Gostava de exalar cheiros enquanto mexia panelas sem hesitar. Preparar  alimentos era sua forma de controle social e também, às vezes, sua melhor maneira de amar. O paladar, segundo suas fontes de pesquisa, mexia com músculos e emoções. Além de garantir sinestesias poéticas.
Cozinhava dizendo coisas lindas de Vinícius de Moraes... ”eia, a mulher amada!” Aliás, se considerava bem amada e  resolvida. E seus piores danos eram resolvidos ao se debruçar em panelas, arrumação de mesa, nas juras de amor ditas após um banquete daqueles.
Cozinhar, escrever, recitar Vinícius, abraçar, beijos molhados e recíprocos eram suas melhores paixões. Era seu gozo mais latente. Não que seu cotidiano não doesse e suas veias sobressaltassem quando acordava em cores opacas, mas, era dada às gargalhadas e alegrias que venciam desafetos e os vizinhos, que reclamavam dos seus estardalhaços de felicidade.
O paladar, sem dúvida, era seu ponto forte, seu acerto de contas com todos os desamores e desesperanças do seu mundo. Amava ver panelas borbulhando, exalando odores que avisavam ao estômago e às imaginações alheias sobre o prato a ser preparado. Mas, de vez em quando, bancava a boazinha e oferecia potes, aos vizinhos, dos quitutes. Todos admiravam por tamanho talento e sua vizinhança, assim, esquecia do barulho das risadas sem regras.

Passava horas em movimento em cima do fogão. Escolhia, com delicadeza e competência, seus temperos, pois, segundo ela, eram os melhores perfumes. Sua casa era dada a esses aromas e não se importava em lavar as louças depois. E depois de tudo cozido, pegava, na estante, seus melhores textos de Vinícius e alguns de Augusto dos Anjos e começava evocar pela casa. Poetizava, declamava, era verborrágica mesmo quando se tratava de poesia. Trazia literatura embalada em seu corpo, risos e nas comidas feitas nas noites mais lindas e nos dias menos encantadores. 

quinta-feira, 17 de março de 2016


Haja vista

Ver te impressionava, ainda mais, em terra que ninguém conseguia ver além do nariz. Todos tinham uma visão muito casual, quase imperceptível. E, ali, João das Rosas almejava elementos fora do alcance do senso e dos olhares comuns.

Conseguia identificar gente hipócrita de longe, aquelas que tentam, com tecido fino e caro, esconder mau caráter, tolerar sentimentos ruins habitando sua alma por um troco qualquer. João tinha visão privilegiada, mais que qualquer indivíduo, mais que qualquer mortal.

Habitava em ambiente onde não havia olhares poéticos, políticos, filosóficos nem tão pouco sociais. As pessoas eram conformadas em ver pelas gretas, pelos orifícios, recortes mínimos, que mal se podiam detectar cores, figuras inteiras e em diferentes dimensões. Perceber, então, pelo olhar, o sentimento depositado, no espírito e na mente, era impensável. Aliás, duvido muito, que pessoas daquele lugar conseguiam desenvolver com eficiência tal ação. Era demais. E elas de menos.

Tudo era aceitável, nada as inflamava. Explosão, indagação, incêndio na alma era abominável. Não sabiam que ver, olhar eram tão essenciais como ferramentas indispensáveis da existência. O mundo, sob essas condições, era acinzentado, com rabiscos, sem traçados delineados. As pessoas também, para os que não viam, não eram notórias nem tão pouco singularidades. Tudo passava, sem, por um ínfimo momento, tivesse um olhar com clareza, com gosto, melodia, expansão, beleza.

A beleza nem era relativizada. Nem aclamada, questionada, inventada. Sim. Acredito! Estavam todos, menos João, anestesiados, sem grandes universos, sem contemplação, perspectivas, vertentes. Um cenário adorável para os manipuladores, mentirosos, ardilosos. Mas, a esperança brotava devagar em João.

Ele via poesia na esquina, nas expressões mais sorrateiras, nas palavras quase-nunca proferidas, nos descompassos do cotidiano, nas beiradas e nos descentros. Olhava com exatidão e serenidade os homens, teimando acreditar que seria possível, um dia, a visão de todos. Sonhava e alimentava que, em algum tempo, haveria possibilidade de todos os seres olharem.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Ela reinventa e dá para querer mais. Vive de oitos e oitentas, entre manifestos e boçais. Dá de adivinhar e de querer gostos com olhos e de saborear com outros trejeitos. Ela é de permanências e inconstâncias, é rarefeita, lâmpada acesa, obscuros para sempre não desvendáveis, de falas amargas, sorriso doce. Ela é de polos, descentros, inventos. Gosta de devaneios, passos sorrateiros, asas, pele, margem, meios, feios, raridade e popular. Ela é quem não devia ser e quem predestinou todos os dias nascer!



Velho ninho



Nada mais vale que um abraço. Energiza, aproxima, reinventa afetos e embala palavras. O toque acalenta dores intensas e dignifica a vida em grupo. Não estamos sós quando sentimos o outro; respiração, calor, cheiro, mãos encostadas, fala de reciprocidade, e nos sentimos como ilha quando tanto queremos um afago, um abraço e não somos capazes de, por instante, ter o outro ali.
Minha poesia sofre quando me sinto tão sozinha. Minha poesia renuncia seus próprios versos para que eu alcance o tato daquele que pode me fazer palpitar, feliz e não muito só. Ela própria me serve de acalanto quando mergulho em águas geladas e profundas, nas quais não tenho ninguém. Canta para mim que nada é eterno, inclusive as dores da alma. Também, muita coisa boa passa. Vai voar em outros ninhos, desabrochar para outros olhares. Mas, ela está ali me dizendo para chegar, se achegar.
Pele com pele aquece sentimentos mais ínfimos, mais plenos, mais insensatos, mais delirantes. Gostamos de sentir com o coração, mas precisamos sentir com as mãos, braços, pernas, rosto, tantos de nós. O tato se vangloria da metafísica, dos preceitos espirituais, dos discursos mais acadêmicos, das ausências, dos homens mais céticos.
O apelo da pele, do corpo, da mente reelabora os desejos mais perenes, os sonhos possíveis e os para sempre inventados, os ideais de vida e de morte, as eternas falências e as vitórias inéditas. Ceder ao outro, ao seu carinho, suas impressões concretas, seus alicerces resistidos na corda bamba é aceitar-se carente por muitas décadas, é não se inflamar de vocabulários escorregadios, é se ver nu na alma, é deixar ser refletido no espelho os dilemas escondidos e danosos demais, que lhe pesavam sórdidos e adiposos quilos.

O sentido do tato apropria-se dos sentimentos do coração e das camadas mais densas da mente, empoderando-nos. Ele dá vestimenta àquilo que só é possível ver com olhos invisíveis, com a poesia sobressaltada no peito que deseja voar, como aquele pássaro que, todos os dias, revisita as altas montanhas, rios e mares, mas, ao fim da tarde, quer repousar no mesmo cenário. Naquele que te protege dos abutres e o conforta diante de todos os males.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Tons poéticos


Sempre ouviu com receio, pois percebia coisas que ninguém conseguia vislumbrar. Sentia aos cacos e, na mesma medida, com intensidade de trovões e tempestades. Era natural não se enquadrar por tamanha percepção; incomodava-se com os ruídos dos outros, com as mesmices ecoadas diariamente. Já nem conseguia levar uma vida dita tranquila tamanha sensibilidade, embora, nunca quis ser mais um par de pernas seguindo por aí.
Era demais  existir. Reclamava das mesmas músicas, das mesmas expressões disseminadas entre gargalhadas e palavras tão ausentes de si, de densidade. Sua percepção auditiva o fazia ir além das paredes, das histórias contadas em televisão ou casos ditos em dias de boteco.  Ele não reclamava de viver, de possuir garantia de oxigênio. Queria quintal frondoso de frutas, bem docinhas, é claro, leite e cobertor quente em dia de sereno, chegada de carta sem aviso prévio, mensagem bonita no celular e muitos dizeres poéticos.
Gostava de ouvir palavras que vinham com carga, com cheiro, com voz macia e provocante, com tom de reticências e ares de ser imprudente. Em noite de céu limpo, gritava seus poetas mais audaciosos e percebia, com delicadeza, o som dos insetos escondidos nas folhas. Sentia frutos caindo em sua terra recém-molhada, apalpava sensações quando dava de pisar baixinho. E, em dias de indelicadeza, cantava, aos berros, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e sua Ângela Maria. Repetia mil vezes “ Conceição/ Eu me lembro muito bem...”. E sacaneava sua vizinhança que adorava frases fáceis, cantarolando canções de Chico, Tom, Cazuza. Chegava se atirar na janela para que todos ouvissem seus artistas de verdade.
Não aguentava a conversa da fila do açougue sem misturar palavras  de tédio com receitas de poesia. “ Daí, você mistura os condimentos na carne com filetes de poemas bem ditos, daqueles que não se encontram em qualquer esquina”, dizia com tom de deboche e com remendos de amor. Já que tinha dito adeus ao seu quase grande amor há poucos dias, e deixado de ouvir sua voz, que era o que mais doía, estava entregue a loucuras, a expressões poéticas vestidas de ousadia, a discursos de amor brega, a pedidos de socorro clamados na alma, que, em determinados dias, era possível ouvir quando alguém o abraçava.

Enfim, ele considerou seu poder de audição essencial para que fingisse ter paz. Para que disfarçasse sua coragem e suas formas de cantar e brigar com medo. Não podia negar que ouvir era extremamente agradável quando, naquela noite, resolveu chorar seu quase amor, ouvindo- chorando Noturno ( op.9), de Chopin.