Tons poéticos
Sempre
ouviu com receio, pois percebia coisas que ninguém conseguia vislumbrar. Sentia
aos cacos e, na mesma medida, com intensidade de trovões e tempestades. Era
natural não se enquadrar por tamanha percepção; incomodava-se com os ruídos dos
outros, com as mesmices ecoadas diariamente. Já nem conseguia levar uma vida
dita tranquila tamanha sensibilidade, embora, nunca quis ser mais um par de
pernas seguindo por aí.
Era
demais existir. Reclamava das mesmas
músicas, das mesmas expressões disseminadas entre gargalhadas e palavras tão
ausentes de si, de densidade. Sua percepção auditiva o fazia ir além das
paredes, das histórias contadas em televisão ou casos ditos em dias de
boteco. Ele não reclamava de viver, de
possuir garantia de oxigênio. Queria quintal frondoso de frutas, bem docinhas,
é claro, leite e cobertor quente em dia de sereno, chegada de carta sem aviso
prévio, mensagem bonita no celular e muitos dizeres poéticos.
Gostava
de ouvir palavras que vinham com carga, com cheiro, com voz macia e provocante,
com tom de reticências e ares de ser imprudente. Em noite de céu limpo, gritava
seus poetas mais audaciosos e percebia, com delicadeza, o som dos insetos
escondidos nas folhas. Sentia frutos caindo em sua terra recém-molhada,
apalpava sensações quando dava de pisar baixinho. E, em dias de indelicadeza,
cantava, aos berros, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e sua Ângela Maria.
Repetia mil vezes “ Conceição/ Eu me lembro muito bem...”. E sacaneava sua
vizinhança que adorava frases fáceis, cantarolando canções de Chico, Tom,
Cazuza. Chegava se atirar na janela para que todos ouvissem seus artistas de
verdade.
Não
aguentava a conversa da fila do açougue sem misturar palavras de tédio com receitas de poesia. “ Daí, você
mistura os condimentos na carne com filetes de poemas bem ditos, daqueles que
não se encontram em qualquer esquina”, dizia com tom de deboche e com remendos
de amor. Já que tinha dito adeus ao seu quase grande amor há poucos dias, e
deixado de ouvir sua voz, que era o que mais doía, estava entregue a loucuras,
a expressões poéticas vestidas de ousadia, a discursos de amor brega, a pedidos
de socorro clamados na alma, que, em determinados dias, era possível ouvir
quando alguém o abraçava.
Enfim,
ele considerou seu poder de audição essencial para que fingisse ter paz. Para
que disfarçasse sua coragem e suas formas de cantar e brigar com medo. Não
podia negar que ouvir era extremamente agradável quando, naquela noite,
resolveu chorar seu quase amor, ouvindo- chorando Noturno ( op.9), de Chopin.
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