terça-feira, 31 de maio de 2016

Indumentárias

É querer de Deus minha alma encharcada.
Minhas máculas espreitadas pelo corpo.
As lágrimas sobressaltadas escorregando sem pressa
e inocentando hemisférios de descontentamento.
Não escavo, nem  escondo putrefações.
Tenho o corpo enrugado, em desníveis.
E uma sensação de que irá chegar,
rompendo meu espaço e minha desordem.
Espero que traga as tardes atrofiadas em devaneios.
E intensifique os sóis que nunca me abandonaram.
Estou com o espírito repousado.
Com os olhos mornos.
E com as palavras ressecadas em lábios inflamados, com gosto de angústia.
É sentença isso, meu Deus!
É escárnio de um ser em febre.
São tantos pecados,
mas converto a ausência do fato
na oração que permanece no peito
sem sacrilégios, sem heresia.
Uma oração que alimenta o contorno do corpo interno.
Súplicas que transformo em canção de amor,
Do bem deixado naquela casa, naquele lugar.
Que mal cabiam as partes de nós.
Que mal diziam sobre nós.
Sobrevivemos.
E cá estou em prece.
Em promessas.
Em luta com as camadas da alma.
Com as falas toscas escapadas em meio ao vazio
exposto nas indumentárias do meu ser.
Recorro a Ti
Aflijo a mim,
sem desejos de difamar meu espírito.






sexta-feira, 6 de maio de 2016

Quintaneando


 
E esta minha ternura,

Meu Deus,


Oh! toda esta minha ternura inútil, desaproveitada!...

 


Sempre quando penso em ternura, vislumbro os poemas de Mário Quintana, como este: Canção dos romances perdidos (trecho). Temos, realmente, perdido a ternura, a forma encantada de ver a vida e os outros. Temos preferido a faca a flores, temos dado tinta às desavenças ao invés da delicadeza pernoitada em nós. O que tem acontecido? O que temos acinzentado ou desbotado em nós?
Como diz minha amiga menina-flor Lina Ribeiro, temos perdido o amor, abortado o sentimento, desnutrindo o melhor de nós. É a ternura desaproveitada, perdida entre tantas inutilidades que desorganizam nossa existência. Temos, ao contrário, nutrido o ódio e a deselegância. O mundo tem tornado as pessoas mesquinhas e egoístas, como mesmo sentenciou Quintana (poema Canções).
Temos esquecido tantas coisas. Acovardamos o melhor de nós e deixamos fincarem raízes de amargura, desrespeito e indiferença. Por isso, me alimento de poesia, de Quintana, de suas palavras doces escorridas de seus versos e que se apropriam do meu coração. Tantas vezes a poesia me faz acreditar que alimentar passarinhos e querer asas são tão necessários para que a esperança e o amor humano voem até a mim.
Tantos confrontos de guerra, tantas falas recheadas de veneno e elementos pontiagudos que sangram nossa alma mais bonita. Tantas coisas sentenciadas e ardilosas, tantos entulhos nos discursos. Seria tão melhor a alegria da poesia diária (poema Oração), dar às almas a poesia das crianças, do amor puro provindo dos animais, da leveza trazida do outono, dos coloridos dos verões e do aconchego suscitado no inverno.
Há tantas flores em nós, mas privilegiamos os desencontros, o jardim das ervas daninhas, as certezas tão irreais, o fruto apodrecido e o pão bolorento. Não há consolo e a delicadeza, não há maciez. A aspereza tem aliciado nossos dias, temos dado valor ao diálogo embrutecido, aos dizeres amargos, com gosto envelhecido e mofado.
Onde deixamos nossa delicadeza? Nossa ternura poética que nos enobrece, mantém a nossa chama, embeleza a vida humana? Onde esquecemos? E por que esquecemos? Enterramos em terra infértil e lá deixamos morrer por falta d’água, falta de adubo? O que nos aconteceu? Indagações que acabam no vazio, na ausência, nas lacunas que não preenchemos.
A poesia dos nossos dias não é inútil, a ternura não é objeto em desuso. Nosso caminho continua com flores, continuamos com as estrelas, com os encantamentos. Encantar-se é indispensável para que acreditemos de novo e quantas vezes forem necessárias. Para que o sorriso seja motivo, seja esperança, para que o abraço se torne regra e o carinho das palavras a poesia nos revelada diariamente. Assim, a ternura sempre será aproveitada, meu poeta Quintana.