domingo, 28 de agosto de 2016

Entre ventos e varanda


Ela nunca foi dada à felicidade gratuita. Sempre haveria um porquê para tamanha felicidade e infelicidade também. Não era leviana em seus discursos nem displicente com suas emoções. Sabia, em todos os ângulos, aonde chegaria e em que moradas seu coração iria permanecer.
Nada de suavidades, tecido fino, veludo enrolado no corpo. Tinha agulhas, pregos e inchaços na alma. Não era covarde com o desconhecido nem com o que guardava dentro de si. Era danada demais para cicatrizar e, vez ou outra, entrava em erupção. Sabia que não pernoitava no comum. Era sensível, explosiva, presente, vigorosa.
Ela não considerava as conversas atravessadas como bobagens. Aliás, bobagens ganhavam refinamento em sua fala abusada, sem grandes talentos, mas com propriedades. Tinha força o que dizia, mesmo que enigmática e inconstante.
Sentava na varanda, naquelas tardes que ninguém espera, de vento pomposo e folhas ao chão. Mesmo que não brotasse alento, apreciava o que de bom trazia a natureza e seus hemisférios desconhecidos. Era bastante olhar como se nada viesse, como se o mundo tivesse seguido o curso e ela, ali, intacta, roendo-se em dilemas.
Seus membros enraizavam-se naquela varanda. Ficava em vigília consigo mesma. Era uma espera desmarcada, sem pressas para que, em minutos ou séculos, tudo -ou quase- resolvesse. Seus devaneios persistiam sublimados. Permaneciam.
Ela, mesmo calada, causava ebulição em seu espírito efervescente, mirabolante. Sua palavra não lhe causava todos os dias a mesma comoção, nem lhe ofertava conforto. Tinha o intuito de seguir mesmo que hiatos andavam em sua cabeça.
Nada de responder mensagens, e-mails, ataques pessoais, frasezinhas de carinho, acenos gratuitos. Nesses dias, queria o silêncio dos conflitos, a ausência das intenções. Desejava o mundo inteiro em um breve segundo e segregava, por alguns momentos, o melhor dos dias. Era danoso persistir, querer. Inflamava-se.
Nada de comoção ou abandono. Nada de plateia e bilheteria. Queria sobreviver, mesmo que os dias fossem alternados, mesmo que sua felicidade não ganhasse rotina e dias pares. Era preciso respirar, ganhar oxigênio, destampar o que estava lançado no poço.
Ela não queria cenários de domingos, nem semear o improvável. Sua alegria tinha data e hora, tinha casa, Sol, nuvem e estrela encantando o céu. Sinalizava, agora, que felicidade também se equacionava.


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segunda-feira, 22 de agosto de 2016

A permanência da vida ( poesia)

Sempre quando contemplo a obra surrealista A persistência da memória ( 1931), de Salvador Dali, tenho uma intensa sensação de que estamos, insistentemente, perdendo nossas vidas. Vejo os relógios derretidos no galho seco, na cabeça de um homem e sobre o móvel e remeto-os ao nosso cenário cotidiano, as problemáticas instauradas a partir do danado tempo.
O tempo coordena nossos compromissos e horários, o tempo determina a criação e o extermínio de esperanças e das emoções, o tempo nos liberta ou nos mantém em exílio ou em prisão para que continuemos expiar nossos dilemas. É o tempo que inaugura e mata. E, desta forma, caminhamos entre pontas e frestas da vida.
Mas, isso legitima ainda mais nossas frivolidades e nossas fragilidades. Perdemos tanto a vida quando nos intitulamos melhores que alguém. Perdemos quando apostamos todos os dias em fichas que não valerão a pena. Sabemos das incertezas e da corda bamba e, mesmo assim, deixamos de viver coisas maravilhosas para dar conta dos horários e responsabilidades que, sejamos sinceros, poderiam ser resolvidos em outra hora.
Damos destaque demais aos pincéis que traçam cores frias e aos cenários doentes ao invés de fotografarmos nossos eventos de maior alegria. Ou quem sabe selarmos a poesia de dias melhores, de confetes espalhados por toda a casa. O tempo é impalpável e dinâmico, devendo ser vivido e não consumido.
O que fica são o legado, as lembranças fomentadas e os risos cristalizados nas memórias. Perdemos a vida se nos colocamos incapazes ou acima de qualquer mortal. Perdemos quando destratamos ou ignoramos aquele que nos quer tão bem, quando gastamos tempo com as amarguras costuradas junto ao coração, as quais mudam a cadência de seus batimentos.
Perdemos a vida quando deixamos de olhar com carinho o outro, não demonstrando sensibilidade. Nossos relógios desmancham quando enclausuramos a felicidade e o perdão, quando escorremos só críticas de nossos lábios e não cantamos, com maestria, os elogios. Tão bom ter afeto, ser visto de forma singular, ser amado.
E o que tem feito o relógio escorrer? E o que tem mantido o galho seco? O que fazemos com a breve noção de tempo? Tenho certeza que Chronos ( deus do tempo-mitologia grega) não gostaria que dissolvêssemos o tempo em tantas desimportâncias, em tamanhas canalhices. Não adubemos a arrogância, a prepotência, o desrespeito, a falta do querer bem.

Dali nos ensina que o tempo, comido de forma feroz pelos excessos do cotidiano, é a oportunidade de construir nossa obra suprema, nosso livro mais bonito e mais profundo. Um livro que, lido por muitos, mostrará que não subsistiremos. Persistirá, apenas, a memória do que faremos  com a nossa poesia.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Dias 

Vivo sozinha há três dias,
há duas décadas, 
há cinco séculos.
Vivo sozinha por horas 
e mantenho-me na clausura por minutos.
estou sozinha aqui nas paredes deste cenário sem traçados.
A solidão me ampara, 
delineia os espaços do meu corpo
das ausências que brotam aqui.
É ela que me espera nas tardes de Sol baixo, 
nos tempos de cólera, de inflamações.
Ela não me anuncia nem denuncia os percalços
que insistem marcar os pés.
Estou só.
Sozinha trago as partes não enaltecidas,
mofadas nas frestas de uma tarde mal amada de domingo.
Dias ímpares 
Dias pares
Sozinha amanheço 
e permaneço no afiado tempo.