quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Mitificação
A dor de Narciso
invade espaços
e este sujo boteco.
Sua causa e processo
motivam faltas
e elas se definham.
Jocasta morreu e ressurgiu
entre cinzas e chinelos velhos.
Seu corpo espirra raiva e
desejos fugidios.
Tragédias e comédias
são pintadas no jardim.
Gregos e troianos
invadem o teto da sala,
da casa esquecida.
E nada há.
Mitos, mortos e tortos
deflagrados por doenças,
curas e religiões.
Narciso, Édipo e Dionísio
rompem com a eternidade
e o que tange ser mortal.
Rios afogam a liberdade.
E o antigo revisita o novo.
E o corpo revisita a alma.
Análises humanas deformadas
rompem com a esperada certeza.
Tudo continua e todos se inauguram.





Recortes
Ela construiu o espaço esquecido no sótão. Comprou objetos e reinventou entradas estratégicas, não sabendo se terá tempo para a recomposição. Talvez adote um jeito simples de entrar neste cenário.
Com os pés descalços, a alma úmida e o vento incorporado ao rosto, teve a certeza  de que poderá se revelar e nem negar o sexo como forma de amor.Sob essa vertente, olhou a porta, porém sentiu que ainda está se preparando para receber mais de si e de outros que não conheceu.
Assumiu ser uma mulher mais bonita e perfumada, tendo por escapes outras partes masculinas. Adentrou, com propriedade naquele espaço, cantando modinhas e recitando, com encantamento, os mais tristes versos. Não desejou olhar para trás nem tão pouco compreendeu que daria conta de tudo em um só dia.
Penetrou de mansinho mesmo com a intenção de mergulhar por completa. E sentenciou as ideias que teimavam visitá-la. Ao seguir o cenário deixado no quarto, segurou o antigo relógio e esperou o desejo alcançá-la, como a amante espera o seu objeto de saciedade.
Viu-se no espelho e percebeu faltarem cacos para colar. Não negligenciou sua imagem, embora existissem faltas. Resistiu que chegaria o inverno e, mais uma vez, teria que abrir o armário para a retirada do cheiro de naftalina. Sem contestação, aproximou-se do que era perturbador e quis livrar-se desse esquecimento. Ela aprimorou seu desejo de feminilidade.
  
* Obra de Cláudia Santos, intitulada "Meu sorriso verdadeiro"
Breus


Forças se entrelaçam na noite solitária
e serena,
devolvendo aos caos o excesso de humanidade.

À luz,
romances tediosos e promíscuos são reinaugurados,
descrentes de caminhos
e ausentes de perplexidades.

A obscuridade ronda os seres aclamados
e vazios, sedentos de perspectivas e vinho suave.

O orvalho encharca pedaços e objetos,
e a mundividência e a introspecção
mantêm as lacunas e beiradas depositadas.

No breu dos espaços,
a  identidade torna-se frágil e imponderável,
disposta à solidificação e aos processos
de recriação do intangível e real.



Ainda tenho três tempos para a solidão.

Resta-me tomar meu café

à espera do cavaleiro

que cortará meu corpo,

oferecendo-o como troféu

para todos os reinos.

E os tempos se consolidarão em tempos partidos.


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Potes de Ouro


Queria começar este texto parabenizando-nos por mais um começo de ano. É...conseguimos chegar até aqui. E olha que sofremos bastante nesta viagem; naufrágios, marés altas, apegos e arrependimentos, mas conseguimos um porto. Parabenizo a nós também por toda nossa capacidade de superação mesmo, pois, achando que não conseguiríamos abrir a porta ou subir as escadas do porão, chegamos à entrada principal e pudemos, como nas festas, recebermos os nossos convidados e, enfim, sermos bons anfitriões.
Não é fácil superar. E sentencio essa palavra como peça-chave para iniciarmos nosso ano. Superamo-nos todos os dias quando nos dispomos acordar e lançar novas possibilidades. Quando realmente desejamos e nos enveredamos por novos caminhos, novas passagens. Superamo-nos quando acreditamos de novo que podemos amar,  entregar-nos e deixar a brisa correr por nossa janela. Superamo-nos quando queremos o novo e investimos nisso nosso tempo, nosso esforço e nossa fé.
Reavaliar-se não é tarefa feita apressadamente. Nem tão pouco uma ação desavisada,  feita” nas coxas”, sem analisarmos vertentes e diagonais. São necessários morrer muitas coisas , enterrar destroços para que o navio parta, siga a viagem prevista. É indispensável subverter o passado ou o que nele te contamina e  entope as veias. Sem desprendimentos, não há superação. Não há urbanização das estradas de chão, não há construção de casas ou sua possível reforma. Enfim, meu querido leitor, não há a produção da vivência humana.
Somos humanos porque somos capazes de nos apresentar no hoje melhor que no ontem. E, por tudo, somos superáveis para amanhã. Sem reinvenção, não há criatividade e ciência. Sem novas envergaduras, o sujeito definhe-se, agoniza e passa a ter doenças inflamatórias e crônicas na alma. É, somos um ser sempre no acabamento. E, nisto, vejo nossa riqueza, nossos potes de ouro. Sim... temos milhares deles em nós. E só vemos isso quando nos superamos, quando sentenciamos que não há uma única sentença, uma única escrita.
Então, leitores, vivemos, apaixonemos pelas nossas possibilidades, pelo ”refazimento”, pelo nosso mundo que ora declina ora se ergue. Nessa linha, a história já nos conta: os povos, poderes e governos também são superados; e outros se inventam no lugar. Temos história, literatura, artes, etc., porque nos superamos, recriamos espaços e culturas. Claro que somos frutos de solidificações, bases construídas, porém, nossa humanidade é fruto de várias árvores, raízes, chuvas, ventos e sóis.
Espero que, neste ano, você e eu consigamos nos superar e contaminar outros com nossas reescrituras. Comece fazendo coisas adormecidas ou jamais mexidas, como ler, passear e conhecer lugares com quem se quer por perto, rir mais alto, fazer cafuné, ouvir boas músicas, conhecer a história de sua cidade e país, acreditar mais em si. Sem dúvida, aumentará seus potes de ouro, que dimensionará ainda mais seu brilho.

  
* texto publicado no Jornal Espírito Santo de Fato - 09 de Janeiro de 2015