(Henri Matisse)
Ele
adorava suas pernas. Quando se levantava, revelava o tecido epitelial
com comedidos músculos, mas sedoso e sedutor, diria. Suas pernas se
entrelaçavam, poeticamente, não negando o olhar. E nessas idas e
vindas, ele fez apostas, compôs versos e até ensaiou um diálogo.
Mas,
não seria tanto. Seus passos traziam um empoderamento, uma
inconstância que atraía os mais e menos audaciosos. Sua vestimenta
cobria o joelho e isso convertia mais seus olhos, embasbacados
diante do cenário não visto.
De
um lado para o outro, de desencontros, lá estava a moça que lhe
arrancou os olhos e, acredito, o coração do solitário homem.
Deveria ter uns cinquenta anos. Era o que mostrava as linhas
expressas em seu rosto, a cor dos cabelos, o jeito de abotoar a
camisa e olhar os transeuntes. Não mais que cinquenta, talvez um
pouco menos. E a moça, pelas passadas e pelas curvas adquiridas, não
menos que vinte e oito, trinta anos. Isso. Uma quase balzaquiana
atravessando o cenário.
Ele
a visitava todos os dias, mesmo sem uma palavra. Um bom dia que seja
para disfarçar. Ou quem sabe, “ o dia anda rápido”, “ está
tão quente aqui.” Nada. Era fervilhante olhar aqueles contornos
cantados nos passos. Achava bonito de vê, dava para perceber o olhar
colado no andar.
Tenho
a impressão que não se passava um dia que ele não estivesse lá.
Mesmo que rápido, já que o dia nos consome em tantas questões. Ele
se fazia presente, como parte do cenário, para contemplar o que
sabia ser a sua musa, não pensada pelos deuses.
Com
o tempo, ela passou o olhar, como se os seus olhos escapassem
propositalmente. Desejava que não se habituasse ao espaço, cheio de
perguntas burocráticas e obviedades sacralizadas.
Ah,
percebia-se que ela era devota de literatura fina, sabe. Em sua mesa,
costumava ter livro com página marcada, seja com papel amassado ou
uma caneta. E, hora ou outra, dava de ler alguma coisa.
Não
foi à toa que lhe perguntei o gosto por Machado e Proust. E ela
sorriu, acenando, com presteza, afirmativamente. Aliás, poucas vezes
ouvi sua voz que se assemelhava veludo. “Dizia”, realmente,
quando suas pernas se levantavam a fim de recolher as cópias saídas
de uma antiga impressora lá no canto.
Lá,
pelas quatro da tarde, de um dia que não me recordo, apareceu o
homem com seus quase cinquenta anos. Sentou na cadeira, à esquerda,
no fundo, e decidiu permanecer por ali até que o local se fechasse
e, enfim, assumido de coragem e amor, se dirigisse a moça quase
balzaquiana.
Ela
o olhou escondida e incomodada. Sabia de sua devoção. Já havia
sondado os olhares lançados quando dava de levantar. Andou
descompensada, reticente, diminuída. A contemplação daquele homem
a tirava da linha reta, a fazia intolerante a si mesma, ao corpo que
aproximava tantos olhos.
O
homem manteve-se, à espera de uma lacuna para que, finalmente,
revelasse sua pretensão tão nunca e constantemente declarada. Fim
do expediente. Guarda de documentos e pertences largados em volta da
mesa. Silêncio pertencendo ao espaço.
Ele
decidiu se achegar, refutar formas de desesperança e descrédito que
a moça poderia trazer. Pulou algumas cadeiras e solicitou informação
ao homem do lado com a intenção de amenizar os ares de
desassossego. Ela, neste exato momento, não se encontrava.
Mas,
pressentia sua chegada. Mãos, trêmulas, revelavam o quão
importante se convertia a moça para a sua vida esquecida. Ao
adentrar o local, a olhou e viu sua alma escapar com o coração. Ele
a viu tão profundamente que o tempo tocou o espaço.
Sorrateiramente, ela sorriu e o perguntou: “deseja algo, senhor?”
Extasiado,
ele de leve sorriso, ensaiou duas palavras e acenou com a cabeça não
haver interesse em nada. Ela, agradecida, despediu-se dos colegas e
caminhou até a porta. Neste momento, sua felicidade não desejava
mais nada.
* Texto publicado na Revista Cachoeiro Cult, de outubro de 2016.
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