terça-feira, 27 de maio de 2014

Em Tempo
Eram três horas. Alice sentia-se atrasada. Era comum ter dificuldades com o tempo, apesar de colecionar vários relógios. O último recebido tinha guardado ali, em sua cabeceira, como prova de que era lembrada. O tempo  lhe inflamava, às vezes, mistérios e sentenças.
Em sua aula de filosofia, tinha lido que o tempo é a marca da humanidade, somos construídos sob ele e não há como fugir.”É um conceito percebido pela vivência, parte de nossa percepção mental”. Ao ler isso, se convenceu que sempre viveu à espera, sempre delegou aos outros sua tarefa de sobrevivência.
Os relógios, objetos de coleção, foram tentativas de se agarrar ao tempo, costurando elementos de seu antes  com as considerações de seu porvir. Nada está sentenciado, mas suas vivências até então nunca tinham lhe causado tamanho desassossego e indagações, que estavam  escritas em seu espelho mesmo sem perceber. Que danação!
Como forma de se apropriar de algo, que nunca tinha conseguido, recorreu à caixa de relógios e alguns escritos empoeirados que se depositavam na cômoda rotineiramente aberta, nem que seja uma fresta...e de espaços minúsculos ela gostava.
Com a caixa em mãos, refez a trajetória de cada relógio que comprou; aqueles de liquidação até os ganhados em datas importantes, pois todos sabiam de seu gosto esquisito por essas peças. Contemplou cada um e começou a se lançar perguntas, coisas que não era costume.
Recorreu a seu livro antigo e arregalou bem os olhos quando leu que, segundo Kant, não há realidade de tempo. “O tempo é uma noção a priori que não designa nada além de determinada característica do nosso modo humano de receber informações através dos sentidos.”
Nesse momento, percebeu que seu tempo era uma invenção de sua mente anestesiada. Passou a indagar que nada era real, os relógios apenas se apropriavam da organização. O que fazer de si agora? Não estava ainda acostumada com essas reclamações internas, nem tão pouco dar vivência a esse tipo de leitura. Tudo pra ela sempre se concebeu chato, mas acreditava ser o tempo o limite entre a realidade e os seus desejos.
Costumava receber verdades alheias, e tomá-las aos goles, mantendo-as como certas até que outros falassem. Mas agora estava sem o visgo que a mantinha na realidade, sem o alimento que a nutria. Esse escape não era esperado por sua personalidade. Questões que a atiravam em um momento desconhecido. E os seus relógios... o que fazer com eles. Isso pairava, neste instante, em suas concepções. Tentava guardar sua noção de tempo, que escorria, neste presente, pelo ralo de seu banheiro.
Sem realidade palpável, num corpo esguio, como sobreviver neste caos. O tempo, pensava, não segue escala cronológica nem define meu momento de comer. Ah...agora sentia uma fome descomedida, uma necessidade que consumia muito mais que suas vísceras, corroía seu espírito.Era seu momento epifânico.Em êxtase, passou a olhar.

Alice guardou sua coleção. Não esqueceu de fechar a gaveta. Passou a visitar cômodos esquecidos. Limpou seu espelho. Inaugurou ordens e passou a se alimentar, uma fome que não conseguiu saciar.Com o passar do tempo, aprendeu a mexer nos ponteiros dos relógios e resolveu dar de presente o relógio de cabeceira.  

Um comentário:

  1. A imagem refere-se à obra Persistência da Memória ( 1931), de Salvador Dali.

    ResponderExcluir