Em Tempo
Eram três horas. Alice sentia-se
atrasada. Era comum ter dificuldades com o tempo, apesar de colecionar vários
relógios. O último recebido tinha guardado ali, em sua cabeceira, como prova de
que era lembrada. O tempo lhe inflamava,
às vezes, mistérios e sentenças.
Em sua aula de filosofia, tinha
lido que o tempo é a marca da humanidade, somos construídos sob ele e não há
como fugir.”É um conceito percebido pela vivência, parte de nossa percepção
mental”. Ao ler isso, se convenceu que sempre viveu à espera, sempre delegou
aos outros sua tarefa de sobrevivência.
Os relógios, objetos de coleção,
foram tentativas de se agarrar ao tempo, costurando elementos de seu antes com as considerações de seu porvir. Nada está
sentenciado, mas suas vivências até então nunca tinham lhe causado tamanho
desassossego e indagações, que estavam escritas em seu espelho mesmo sem perceber.
Que danação!
Como forma de se apropriar de
algo, que nunca tinha conseguido, recorreu à caixa de relógios e alguns
escritos empoeirados que se depositavam na cômoda rotineiramente aberta, nem que
seja uma fresta...e de espaços minúsculos ela gostava.
Com a caixa em mãos, refez a
trajetória de cada relógio que comprou; aqueles de liquidação até os ganhados
em datas importantes, pois todos sabiam de seu gosto esquisito por essas peças.
Contemplou cada um e começou a se lançar perguntas, coisas que não era
costume.
Recorreu a seu livro antigo e
arregalou bem os olhos quando leu que, segundo Kant, não há realidade de tempo.
“O tempo é uma noção a priori que não designa nada além de
determinada característica do nosso modo humano de receber informações através
dos sentidos.”
Nesse momento, percebeu que seu tempo era uma
invenção de sua mente anestesiada. Passou a indagar que nada era real, os
relógios apenas se apropriavam da organização. O que fazer de si agora? Não
estava ainda acostumada com essas reclamações internas, nem tão pouco dar
vivência a esse tipo de leitura. Tudo pra ela sempre se concebeu chato, mas
acreditava ser o tempo o limite entre a realidade e os seus desejos.
Costumava receber verdades alheias, e tomá-las
aos goles, mantendo-as como certas até que outros falassem. Mas agora estava
sem o visgo que a mantinha na realidade, sem o alimento que a nutria. Esse
escape não era esperado por sua personalidade. Questões que a atiravam em um
momento desconhecido. E os seus relógios... o que fazer com eles. Isso pairava,
neste instante, em suas concepções. Tentava guardar sua noção de tempo, que
escorria, neste presente, pelo ralo de seu banheiro.
Sem realidade palpável, num corpo esguio, como
sobreviver neste caos. O tempo, pensava, não segue escala cronológica nem
define meu momento de comer. Ah...agora sentia uma fome descomedida, uma
necessidade que consumia muito mais que suas vísceras, corroía seu espírito.Era
seu momento epifânico.Em êxtase, passou a olhar.
Alice guardou sua coleção. Não esqueceu de
fechar a gaveta. Passou a visitar cômodos esquecidos. Limpou seu espelho. Inaugurou
ordens e passou a se alimentar, uma fome que não conseguiu saciar.Com o passar
do tempo, aprendeu a mexer nos ponteiros dos relógios e resolveu dar de presente
o relógio de cabeceira.
A imagem refere-se à obra Persistência da Memória ( 1931), de Salvador Dali.
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